Para ler Olho da Rua, de Eliane Brum, merece um mate feito a capricho. Daqueles de cuia larga, espumado e com topete grande. Ao servir a primeira cuia, a certeza era de uma leitura regada com um mate quente no frio fim de outono encruzilhadense. Ledo engano. Durante a leitura, o mate, feito com tanto esmero, foi esquecido, recostado ao porta-cuia, junto à garrafa térmica. Isso, porque a leitura das dez reportagens foi espontânea, fluente. “Uma repórter em busca da vida real”, que conta histórias de pessoas ditas “comuns”. Já no prefácio, o conterrâneo Caco Barcelos promete: “Ela renasce e se recria a cada reportagem.”
Durante os textos, Eliane repete as expressões “dia comum”, “pessoa comum”. Ao mesmo tempo, consegue descrever cotidianos fantásticos, como aqueles lá do “útero da floresta”: a eterna luta entre brancos e índios; as parteiras que contestam os médicos; a busca desenfreada pelo ouro. Todas elas acompanhadas de comentários que contam os bastidores que ensinam muito de outro cotidiano - o de repórter. É essa, talvez, a melhor parte do livro. Trazendo os ensinamentos e as sensações da jornalista durante cada reportagem. O verde da floresta fazia lembrar o chimarrão, que esfriava ao lado.
O mate frio foi tomado rapidamente para servir outro (quente) e, assim, acompanhar o próximo capítulo. A casa de velhos foi uma das melhores reportagens, porque nela, rir e chorar são emoções quase incontroláveis. Ao contar a vida de moradores da Casa São Luiz para a Velhice, autora é fiel aos detalhes. Esses detalhes nos remetem às perguntas “quem somos?”; “de onde viemos?” e “para onde vamos?”. Velhos com histórias diferentes que acabaram num mesmo lugar. Um asilo. Lá, segundo Eliane, um cotidiano variado, composto de angústias e medos, mas também de alegrias e namoros na terceira idade.
Em O homem estatística, Hustene Alves Pereira ilustra um outro tipo de pobre. Ele sentiu as pequenas conquistas de uma vida dura escorrerem entre os dedos. Um texto magnífico. Mas o que mais impressiona é o comentário dele. É lá que Eliane Brum revela duas coisas: a habilidade jornalística e a proximidade com suas fontes. “Fui encarregada de fazer uma reportagem sobre pobreza. Comecei a pensar no que poderia dizer que já não houvesse dito”, conta a autora. Para chegar ao resultado, ela dá a receita na página 240. “Acredito que as melhores reportagens são resultados de uma pauta que se complicou”. Encontrou Hustene e, a exemplo do primeiro livro, novamente viu a vida que ninguém vê. A relação com Hustene e a família foi muito além da reportagem. “Nas noites de plantão, sozinho, me ligava”, afirma ela.
Ver o que ninguém vê em Olho da rua não foi exclusividade de Eliane Brum. As fotos, conforme a própria autora, é um dos complementos do livro. Na página 74, ela confessa: “Ele (fotógrafo) capaz de perceber delicadeza até nas pedras, via o que eu não enxergava”. A fidelidade da foto é parecida com a fidelidade do texto. Em vários momentos ela reafirma sua honestidade com a(s) fonte(s). Para Eliane, é apenas “a possibilidade de reafirmar a vida possível”. Mais um mate esfria na cuia. Somente ao fim de cada capítulo, é possível tomar o intragável mate frio e encher a cuia de novo, na esperança de um chimarrão quente.
Contar uma história em primeira pessoa foi um ponto questionado pela própria repórter em O inimigo sou eu. Mais uma vez, Eliane Brum mostra sua principal característica: fidelidade ao fato, às sensações vividas por ela mesma. A escolha pela primeira pessoa foi justifica no fim do livro: “Percebo o que é essencial na hora em que acontece”, explica. Já no início, as parteiras da Amazônia já falavam sobre o tempo das coisas. Eliane encarna a própria parteira Juliana Magave de Souza e diz que a reportagem deve ser preferencialmente de parto normal, escutando, prestando atenção a cada gesto, trajeto e passar tudo isso para o papel. “Foi quase uma psicografia de gente viva”, diz na página 38. Eliane Brum complica a pauta, muda e (re)constrói conceitos de Jornalismo. Vai além de “reafirmar a vida possível”. Ela testemunha a morte de Ailce de Oliveira Souza. Isso faz com que qualquer pessoa se surpreenda com seu texto e, que qualquer autoridade assine em baixo. Como uma repórter pode ver o que ninguém vê? Mágica? Sorte?
Quando o jogador de futebol Paulo Roberto Falcão chegou à Itália, na década de 80, disseram a ele que o seu futuro time, o Roma, não tinha sorte. Assim como Eliane Brum, ele também desconstruiu conceitos. Disse que sorte e azar não existem no futebol. O que existe é competência e incompetência. No jornalismo também é a assim. Em meio a discussões sobre a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista, a competência deve ser o diferencial para ter garantia no mercado de trabalho. Um trabalho bem apurado e fiel aos fatos sempre terá lugar no bom jornalismo. Como faz Eliane Brum em Olho da rua, retratando pessoas comuns com uma competência venerável. Assim, ela ganhou quase 40 prêmios e foi a responsável por esfriar várias cuias de chimarrão Brasil a fora.
Parabéns pelo blog, Urgel.Muito bem organizado e muito bom seus textos.Belo trabalho!
ResponderExcluirNo teu perfil tu se diz ser um "jornalista em construção". Já tá construído tchê.
ResponderExcluirÉ fácil se identificar com teus textos.
Parabéns. Sucesso.