sexta-feira, 29 de outubro de 2010

AÇÕES QUE ANTECEDEM O ATO

Carlinhos pegou a enxada do pai e passou a arrastá-la por uma parte do pátio. Seu pai, curioso, lhe pergunta: "O que tu faz com essa enxada, guri?". Concentrado no serviço, o garoto nem olha pro pai e só responde: "Estou fazendo as estradas da minha cidade, pra brincar de carrinho". Carlinhos passou a tarde toda na construção da cidade. Além das estradas, fez prédios, casas, escolas, campo de futebol e uma igreja. Até um buraco ele cavou para servir de túnel.

Quando estava acabando a construção do mini mundo, o pai lhe trouxe os carrinhos para Carlinhos brincar. "Não precisa, não, pai. Não vou brincar hoje. Meus carrinhos estão limpos e não vou sujá-los na terra", explica o mocinho. O moleque não sabia, mas as ações que antecedem o ato, às vezes são mais legais.

O pai, então, junta os brinquedos e os leva  de volta pra casa, intrigado com o filho, que passou a tarde construindo o palco da brincadeira e não brincou. No dia seguinte, Carlinhos desmanchou aquela cidade e construiu outra. Os carrinhos continuaram guardados.

Entre uma construção e outra, Carlinhos cresceu. Na adolescência, conheceu  Aninha, a mais bela moça que já tinha visto. Aninha era mesmo bela, mas sua arrogância a afastava de qualquer garoto. Porém, Carlinhos queria, pelo menos, um beijo de Aninha - a qualquer custo. Mas a menina não dava entrada. Qualquer insinuação e rapazinho já era descartado.

A arrogância de Aninha atiçava ainda mais o desejo de Carlinhos. Numa bela tarde, os dois estavam saindo da aula. Eram os últimos a deixar da sala. Carlinhos se aproximou, agarrou sua donzela pela mão e disse palavras doces, que agradaram a moça. "Hoje ela não escapa. É hoje!", pensou ele.

Os rostos foram se aproximando, a respiração se alterou, a boca secou. Carlinhos se dava conta de que estava prestes a beijar a garota mais linda do colégio (e a mais chata também!). Os lábios de Aninha sentiam o calor de Carlinhos. Quando se tocaram, ele desistiu. Preferiu não sujar seu carrinho na terra. A ação que antecede o ato vale mais. O legal mesmo foi construir a estrada.

Aninha nunca mais falou com Carlinhos.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A TACADA PERFEITA

Década de 90. Mais precisamente, novembro de 1994. A diversão da gurizada daquela época era o jogo de taco - o beisebol na versão gaúcha. Duas bases com dois buracos, onde os tacos devem permanecer sempre, exceto na hora de rebater a bola. Só pontuam os rebatedores, trocando de base, enquanto os lançadores buscam a bolinha. Atrás de cada buraco, a latinha. Quem derrubá-la recupera os tacos e, assim, pode pontuar. Essas são as regras básicas. Cada dupla tinha, geralmente, pelo menos um integrante mais forte para rebater a bolinha o mais longe possível.

Não era o caso da minha dupla. Éramos dois franzinos e nossas tacadas iam, no máximo, a cinqüenta metros da base. Mas até que nos dávamos bem, apesar de pequenos. Os pontos custavam a sair, porém, ganhávamos várias partidas. Jogávamos todos os dias, quase toda hora. De manhã, de tarde (antes da aula), na hora do recreio e depois da saída do colégio. Haviam vários lugares pra prática do Tacobol: Na Feira do Produtor, no colégio, na rua - bem em frente a minha casa, entre outros.

Uma vez, eu e meu parceiro voltávamos do colégio com os tacos no ombro e a bolinha no bolso quando dois guris, um pouco mais velhos e bem mais fortes nos desafiaram: "Querem uma partidinha na Feira do Produtor? Ou as maricas tem medo?". Nos olhamos, sem saber o que responder. Não podíamos passar por maricas, mas certamente perderíamos a partida pra eles. Eram maiores, mais e fortes e com caras de mau. Topamos. No trajeto do campo de batalha, as intimidações eram de dar medo: "Será que esses guris tem nave pra buscar a bolinha na lua?" ou "Vai ser fácil... só duas tacadas e termina esse joguinho."

Sorteamos quem sairia nos tacos no tradicional "seco ou molhado", cuspindo em um dos lados do taco (quem jogou taco, sabe: é tipo um par ou ímpar). Os brutamontes saíram rebatendo; nós lançando. O primeiro lançamento resultou nua rebatida certeira. Fui buscar a bolinha na esquina da Praça Dr. Ozy Teixeira, há quase oitenta metros. Eles 11 X 0 Nós. No próximo lançamento, outra rebatida. Mas essa não foi tão forte e deu pra agarrar a bolinha no ar. "Tempelasduas!". Recuperamos os tacos, mas com medo de que os brutamontes nos fizessem alguma sacanagem. Com nossas rebatidas tímidas, conseguimos encostar no placar.


Quando tudo ia bem, tivemos que entregar os tacos pela terceira bola pra trás. "Agora esses franguinhos vão ver!", disse um deles. O sentimento de derrota era bem mais forte, mas agora estávamos mais confiantes e arriscamos alguns truques, como enganador o rebatedor com uma pedra para que tire o taco do buraco. Deu certo. Derrubei a latinha e retomamos os tacos. Um deles, certo de que iriam recuperar os tacos e ganhar a partida, lançou uma bola quicando (é o maior pecado de quem lança, pois facilita a tacada). Foi a melhor rebatida da minha vida. A bolinha se perdeu e ganhamos! Os brutamontes tinham caras de mau, botavam medo, mas foram leais. Nos parabenizaram pela vitória.

Lembrando desta feita, resolvi ensinar as técnicas do Tacobol ao meu sobrinho, de dez anos. Aprendendo a jogar com os mais velhos, já teria o atalho das regras e das malandragens do esporte. Produzi alguns tacos,  comprei a bolinha e improvisei as "latinhas" com duas garrafas pet. Mas onde jogar? Na minha antiga casa, não havia mais saibro (a rua foi calçada); a cancha do colégio não existe mais; a Feira do Produtor foi coberta por estrutura de madeira. Rodamos por vários pontos da cidade atrás de um lugar pra passar adiante a tradição do beisebol gaúcho. Só no Parque de exposições achamos uma cancha mais ou menos boa. Chegando lá, a primeira palavra foi "tempelasduas!". Intrigado, o guri pergunta: "Tio, o que é isso que tu falou?".

Respondi com toda a calma de tio: "'tempeladuas' significa 'tempo pelas duas casinhas'. Sabe que um dia eu dei a maior tacada da minha vida?Foi a tacada perfeita! Década de 90. Mais precisamente, novembro de 1994. A diversão da gurizada daquela época era o jogo de taco..."

domingo, 3 de outubro de 2010

O SEQUESTRO DA URNA

Pra quem não sabe, os detentos sem condenação definitiva podem votar. Isso, só se as urnas forem até eles. Pensando nisso, um juiz eleitoral resolveu transferir uma seção eleitoral para dentro do presídio. "Os presos precisam exercer a cidadania", justificava o juiz.

Mas o pessoal que votava naquela seção não gostou muito da decisão. "Como assim? vou votar num presídio?" - se perguntava uma senhora. Alguns até pensaram em justificar a ausência justamente por serem obrigados a votar num ambiente considerado hostil. Mesários também não queriam trabalhar.

Bom. Gostando ou não o pessoal tinha que cumprir a ordem judicial. No dia da eleição, o movimento era grande, dentro e fora do presídio. Os burburinhos corriam soltos. Uns com medo de algum imprevisto. Era uma votação inusitada.

Tudo corria bem até 40 minutos antes do fim do processo eleitoral. Um dos apenados desconectou os cabos da urna e, rapidamente carregou o aparelho até uma salinha ao lado. Alguns mesários correram atrás dele e quando lá chegaram ele já tinha retirado o disquete que continha os votos daquela seção e estava prestes a atirar a urna pela janela.

"Não se aproximem! Eu atiro essa porcaria pela janela!" - alertava ele, que também considerava sua prisão injusta. Chegaram os policiais, apontando suas pistolas para o amotinado solitário. "Largue a urna!", ordenava um deles. Enquanto isso, o Tribunal Regional Eleitoral era acionado para a substituição do aparelho de votação.

Os policiais tentavam convencer o rebelde a desistir do sequestro da urna, argumentando que aquilo não tinha o menor cabimento, que o ato só atrapalhava o processo de votação. Mas o preso rebelde não dava trégua. "Tu tá me dizendo que os votos desta urna não valem nada? Eu exijo que me libertem daqui. Ou eu arrebento com essa urna"

Os sentinelas da urna pensaram na importância daqueles votos e se entreolharam. Mas sabiam que os dados estavam no disquete. Um deles, ria daquela situação ridícula e, assim, debochando do rebelde, se aproximou."Então atira isso pela janela, que eu quero ver!"

O preso sabia que a estratégia de destruir a urna não adiantaria. Então, largou a urna no chão e puxou da cueca o disquete que continha os 146 votos daquela seção. Colocou o objeto na boca e continuou: "Se vocês não me atenderem, eu destruo esses votos!"

O policial que estava próximo perdeu a paciência. Agarrou o amotinado e o prendeu novamente. O disquete foi mordido e destruído. O preso voltou pra cadeia. Os votos foram perdidos. A notícia rapidamente se espalhou. A senhora revoltada com a decisão do juiz, logo comentou: "Meu voto não vale nada mesmo."

O juiz eleitoral voltou atrás e restabeleceu a seção eleitoral para a escola mais próxima do presídio. Nesse caso, se Maomé não for à montanha, a montanha não vai precisar se deslocar.